Ao longo de 38 anos de carreira, a rapper Sharylaine não só lutou para abrir caminho no hip hop, mas também trabalhou para deixar as portas abertas para as mulheres que vieram depois. Para a artista, mesmo 40 anos após a chegada dessa cultura ao Brasil, o machismo ainda é um obstáculo a ser superado. “É um problema mundial, mas que nós mulheres começamos em vários lugares, em vários momentos, a trabalhar isso, e trabalhar juntas, porque a gente entende que só juntas nós conseguimos alcançar mais, dar mais passos. Acho que esse é um processo que não tem fim”, ressalta.
Apesar das dificuldades, há alegria de ver que os diversos projetos construídos nessa trajetória têm tornado o ambiente do hip hop mais acolhedor para as mulheres. “Me emociono de ter as meninas hoje em patamares melhores, com acessos melhores, pensando e desenvolvendo sua produção. Não, necessariamente, dependendo de um produtor para dizer o que ela vai ter que fazer”, acrescenta a rapper que participou da fundação, entre outras iniciativas, da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop.
Toda essa história começou no centro de São Paulo, na Estação São Bento de metrô, no início da década de 1980. Além da boa localização, Sharylaine conta que o local foi escolhido por questões práticas. “O chão é bom, você poder dançar, de certa forma, num espaço seguro, e também tinha acesso à energia elétrica, para não gastar tanto com as pilhas”, conta a pioneira.
Foi pela dança que a artista chegou ao hip hop. Mas logo Sharylaine passou a empunhar o microfone para fazer rimas. “Eu pensava assim: ‘não posso ser uma mulher que fala só sobre a questão da mulher’. Porque não é só isso. A gente não vive só isso. Pensar mundo mesmo, pensar política, pensar a história do meu povo”, lembra.
Para a gravação do programa Caminhos da Reportagem, da TV Brasil, Sharylaine voltou à estação de metrô onde a cultura hip hop tomou forma, repercutindo em todo o país nos anos seguintes. Foi a partir dos encontros ali que a jovem rapper, com 20 anos à época, integrou a coletânea Consciência Black, volume 1, ao lado dos Racionais MC’s. “Eu nem imaginava que aquilo ia ser tão importante para a minha trajetória”, conta.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Sharylaine.
Agência Brasil: Como surgiu a ideia de fazer encontros de hip hop aqui na Estação São Bento?
Sharylaine: Foi uma questão de ocupação da galera do breaking, um espaço que viabilizava: o chão é bom, você poder dançar, de uma certa forma, num espaço seguro e também tinha acesso à energia elétrica, para não gastar tanto com as pilhas. As pilhas para rádio eram muito grandes e muito caras. Você precisava às vezes de quatro, seis, oito pilhas para o rádio funcionar. Aqui era um palco, que 30 anos atrás a gente fez a mostra nacional que se tornou até internacional, pelas pessoas que vieram. Nós fizemos a mostra de breaking com apoio do Geledés em parceria também com o Metrô de São Paulo.
Agência Brasil: Como você começou como b-girl?
Sharylaine: Havia uma intenção de dançar. Eu andava com os meninos do breaking, da gangue. Mas, era mais difícil pra mim dançar no chão. O que eu aprendi foi smurf dancing, que, hoje, a galera chama de dança de rua, que é uma dança mais no alto. Eu tive uma queda no basquete que zoou meu joelho e que inviabilizava mesmo.
Agência Brasil: E como foi essa transição da dança pra ser MC?
Sharylaine: Eu conheço os meninos em 1985 no baile do meu tio, José Augusto. Eu começo a acompanhá-los e, dentro da gangue mesmo, eu conheci o rap. Eu falei: “Bom, isso é possível”. Comecei a ensaiar, cantar o rap de um amigo, até que eu resolvi que a gente devia ir pro palco. Em 1986 fundei o Rap Girls, que é considerado um dos primeiros ou o primeiro grupo de rap feminino do Brasil.
Agência Brasil: Até hoje tem batalhas de rimas aqui na parte de cima da estação, no Largo São Bento?
Sharylaine: É uma retomada mesmo do movimento, porque o movimento sempre aconteceu no âmbito central da cidade. Dizer que hoje a gente tem batalha feminina é um avanço muito importante porque a cultura hip hop continua machista, continua masculina e, se a gente quer ter algum espaço nesse lugar, nós precisamos criar este espaço.
Agência Brasil: Como foi isso de ser mulher e se inserir nesse mundo machista do hip hop?
Sharylaine: Luta, porque ainda hoje há homens hip hoppers, dentro da cultura que acreditam que a mulher só é boa se ela rimar feito um homem. E também que o rap foi feito para homem. Eu já ouvi isso, e não estou falando de uma década atrás, estou falando de 2023, quando a cultura hip hop completa 50 anos, mundialmente falando, e 40 anos, no Brasil, e de produtores que produziram mulheres. Tem alguma coisa errada aí, né?
Eu fiquei bem chocada, mas, ao invés de me retrair, eu acho que me deu mais força pra reforçar a luta que eu já encampei ao longo do tempo. Nós, mulheres, a gente acabou se organizando em núcleos, em grupos, nos quais as pessoas falavam pra gente: “Agora vai ser o Clube da Luluzinha? Vocês estão querendo dividir o movimento?”. Não, a gente não está querendo dividir, mas a gente não está se vendo representada. A gente não está se vendo reconhecida no processo, porque você vai ver homens citando homens como referências. Raramente você vai ver um homem citando uma mulher como referência para o trabalho dele. Você pode falar nacionalmente ou internacionalmente.
Agência Brasil: Por falar em referência, a gente fala muito do Kool Herc como um grande produtor, mas a Cindy Campbell estava lá fazendo a produção da primeira festa de hip hop nesse pioneirismo. Qual é a importância da Cindy Campbell, ela te influenciou pra você estar nesse lugar?
Sharylaine: Não me influenciou, justamente porque ela foi invisibilizada. Eu conheci três homens antes de saber que ela era o pivô disso tudo [da block party de 1973, em Nova York, que fundou a cultura hip hop]. Décadas depois eu fui saber da Cindy Campbell. Décadas depois eu fui saber que a produtora do Sugar Hill Gang era uma mulher, a Silvia Robinson, que também ficou invisibilizada no processo. As pessoas sabiam qual era o nome da gravadora, mas ninguém falou quem era a produtora, não se teve a necessidade de falar quem era o produtor porque o produtor não era um homem. Ela ficou nesse processo de invisibilidade. Esse é um processo tanto lá quanto aqui é um processo de construção.
Mesmo lá, nesse período de cinquentenário que a gente teve a oportunidade de acompanhar celebrações. A gente percebeu a invisibilidade das mulheres. Então você teve, por exemplo, um evento no Yankee Stadium que as mulheres que foram foram convidadas por homens. Elas não estavam no flyer de divulgação. Isso não é um problema só do Brasil, é um problema mundial, mas que nós mulheres começamos em vários lugares, em vários momentos, trabalhar isso, e trabalhar juntas, porque a gente entende que só juntas nós conseguimos alcançar mais, dar mais passos. Acho que esse é um processo que não tem fim.
Agência Brasil: Conta um pouco da história da fundação da a frente de mulheres do hip hop.
Sharylaine: Eu sou cofundadora do Feminrappers, que nasceu em Geledés, o Instituto da Mulher Negra. Também sou cofundadora do Minas da Rima, que veio do embrião do Feminirappers, para pensar essa movimentação da mulher do rap na cena, mas abrigando os outros elementos, e da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop – um coletivo de vários coletivos, que abriga mulheres de todos os elementos. Todos com um fundamento único, que é pensar essa mulher no cenário, como que ela chega, como que ela é acolhida, o que a gente faz pra mantê-la pra que ela não desista, pra que ela continue e como que a gente viabiliza espaços pra ela mostrar sua arte. Espaços respeitosos, que elas possam colocar o seu equipamento e não ter o equipamento sabotado por terceiros, para ver se realmente ela é boa.
Porque, quando é a mulher na produção, há sempre a questão: “Será que ela é boa mesmo?”. “Será que ela é competente?”. Então, você tem algumas sabotagens pra testar essas mulheres. E posso falar que é em todos os elementos da cultura hip hop, não é só com a mulher MC, mas é uma problemática pra b-girl, break-girl, que dança o breaking, para a DJ, para a grafiteira, que muitas vezes tem uma parede pra ser grafitada e eles deixam um cantinho pra ela. Ocupam todo o lugar e deixa só um pontinho pra ela. São sabotagens que a todo tempo a gente tenta quebrar ou, de fato, construir esse espaço pra gente conseguir fazer a cultura.
Agência Brasil: Ainda falando dessas iniciativas de que você participou pra apoiar as mulheres no hip hop, em todos os elementos, você vê isso dando frutos, teve gente que conseguiu crescer melhor porque tinha esse tipo de apoio?
Sharylaine: Sim, eu me orgulho em dizer e até me emociono de ter as meninas hoje em patamares melhores, com acessos melhores, pensando e desenvolvendo sua produção não necessariamente dependendo de um produtor pra dizer o que ela vai ter que fazer. Sou muito feliz com isso, mas também tenho que dizer que Brasil afora a coisa é mais difícil.
Em São Paulo, nós estamos caminhando. As meninas fora do que a gente chamaria grande centro – que é São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Rio Grande do Sul – têm uma dificuldade maior. Tem a questão do assédio para poder participar do evento, o assédio para poder ser produzida musicalmente, enfim, isso ainda é uma problemática que a gente está o tempo todo em discussão para ver como a gente age. A questão da violência que também parte pra ações de feminicídio, que está dentro da cultura também. Fazedores da cultura, homens, companheiros, que são atuantes na cultura reproduzindo esse machismo. A gente também sofre por esse lado.
Mas entender essa luta pra aquelas que não estão organizadas. Entender que essa luta é possível. Aquilo que diziam: “Ah, junta uma mulherada no quarto, ou elas vão ficar fofocando ou vão ficar se matando”. Isso não existe. Lógico que somos diferentes, mas temos o que nos une, que são coisas grandes e pequenas. Sejam situações difíceis que a gente precisa lidar, ou sejam caminhos para sair de situações, a gente troca as nossas experiências e informações pra uma ajudar a outra. E para uma não passar pelo que a outra passou. Não que a gente tenha a receita perfeita, mas são experiências que a gente troca e vai se fortalecendo.
Agência Brasil: Vamos falar um pouco da sua trajetória? Você participou de um disco que é um dos mais emblemáticos do hip hop brasileiro, que é o Consciência Black. Queria que você falasse o que foi pra você estar nesse momento.
Sharylaine: Não era pra eu ir sozinha, era pra ir Rap Girls eu e minha parceira City Lee, que não foi porque ela desistiu, parou. Eu ainda titubeei se ia ou não gravar. Eu tive ajuda dos amigos enfim, indo comigo, me inscrevendo pra cantar nos clubes e até para eu me sentir segura. Acabei indo gravar.
Foi bom porque eu nem imaginava que aquilo ia ser tão importante para a minha trajetória que eu olho pra trás hoje e vejo. Mas foi num momento que eu ainda era muito crua. Eu queria ter escolhido a minha batida, queria ter escolhido o meu sampler. Eu fui meio que impulsionada pelo produtor executivo, pelo produtor da música a escolhas como uni-duni-tê. Acho que, se eu tivesse um pouco mais de maturidade, teria feito a música do jeito que eu queria e ela teria pulsado mais.
Mas foi muito importante pra minha trajetória, eu agradeço à equipe [da produtora] Zimbabwe por ter gostado primeiro do trabalho e acreditado e investido para eu poder estar lá e firmar a marca de ter sido a primeira mulher solo a gravar, e acho que, agora, com o reconhecimento de âmbito nacional. Isso me rendeu e me rende vários títulos de reconhecimento pela minha trajetória. Posso dizer que foi um grande presente para quem fazia aquilo que gostava, porque de fato a gente não tinha dimensão do que podia ser. Pensar que 38 anos atrás eu estava só me divertindo, não tinha uma expectativa de seriedade.
Agência Brasil: Tem outros momentos que você destacaria como marcos da sua carreira?
Sharylaine: Marco, acho que é em 1985 quando eu conheci a cultura, através da Gangue Nação Zulu. 1986, quado comecei a cantar e fui subir num palco pela primeira vez pra cantar um rap de minissaia falando de política. Em 1989, quando foi a gravação do disco. A chegada em Geledés, que é o Instituto da Mulher Negra, que foi um divisor de águas de entender o mundo, entender o racismo, o machismo, o feminismo, a sociedade, a violência policial. Conhecer sobre a cultura negra, sobre os nossos ídolos e líderes negros, a história do meu povo, isso também foi um grande divisor.
Acho que os três momentos, que eu chamo de três ondas desse movimento de mulheres, que foram o Feminirappers, Minas da Rima e a Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop e de participar dos embriões da Semana de Cultura Hip Hop. Participei ali do embrião, das reuniões para a gente começar a organizar com a [organização não governamental] Ação Educativa e depois ela se tornar lei [Lei municipal 13.924 de 2004, que criou a Semana do Hip Hop em São Paulo].
Agência Brasil: Pensando nesses quase 40 anos de carreira, quando você começou, o que te incentivou? Que assuntos, que temas que te tocavam, te afetavam, te faziam rimar? Ainda são os mesmos que te fazem rimar hoje?
Sharylaine: Nesses 38 anos, foi um processo de ir conhecendo a cultura hip hop. Você vê o hip hop em todo lugar. Olha que coisa mais linda: está nos prédios, no centro da cidade, está nas comunidades, nas casas, nas favelas coloridas que os grafiteiros e grafiteiras promovem. Naquela época, quer dizer, os primeiros contatos que eu tive com a escrita daquela época era pensar em política, pensar no mundo, pensar fora da caixa, como jovem que nasceu na sua adolescência com liberdade, fora do período de ditadura. Era isso. Quando eu conheço o Geledés é que isso se volta mais para as questões femininas.
Eu pensava assim: “Não posso ser uma mulher que fala só sobre a questão da mulher”. Porque não é só isso. A gente não vive só isso. Pensar mundo mesmo, pensar política, pensar a história do meu povo. Poder contar a história do meu povo através da minha rima, da minha levada. Falar sobre o que é o hip hop, porque até hoje, depois de 40 anos, as pessoas ainda têm dúvidas.
Você vê as pessoas discutindo se são quatro elementos, se são cinco elementos, se são nove, se são 20. Mesmo lá fora tem essas incertezas. Tem gente que comemorou o 11 de agosto lá fora [como data de origem do hip hop], tem gente que vai comemorar o 12 de novembro [data de fundação da Zulu Nation, por Afrika Bambaataa] e tem gente que só vai comemorar em 2024 [como data da reunião dos quatro elementos no Brasil]. Por quê? Por causa dessas divergências, por causa do conhecimento de cada um, da vivência que cada um tem e carrega. Essa produção, para mim, é muito ampla. Eu olho o mundo. E aquilo que me agrada ou que me inquieta, eu quero compartilhar. É sobre isso.
Assista na TV Brasil ao Caminhos da Reportagem sobre o hip hop:
Fonte: EBC GERAL